quinta-feira, 24 de junho de 2010

O meu amor tem um jeito manso que é só seu. E que me deixa louca quando me beija a boca. A minha pele toda fica arrepiada e me beija com calma e fundo, até minh'alma se sentir beijada. O meu amor tem um jeito manso que é só seu. Que rouba os meus sentidos, viola os meus ouvidos, com tantos segredos lindos e indecentes. Depois brinca comigo, ri do meu umbigo e me crava os dentes. Eu sou sua menina, viu? E ele é o meu rapaz. Meu corpo é testemunha do bem que ele me faz. O meu amor tem um jeito manso que é só seu. De me deixar maluca quando me roça a nuca e quase me machuca com a barba malfeita e de pousar as coxas entre as minhas coxas, quando ele se deita. O meu amor tem um jeito manso que é só seu. De me fazer rodeios, de me beijar os seios, me beijar o ventre e me deixar em brasa, desfruta do meu corpo como se o meu corpo fosse a sua casa. Eu sou sua menina, viu? E ele é o meu rapaz. Meu corpo é testemunha do bem que ele me faz.

(O meu amor – Chico Buarque)

terça-feira, 22 de junho de 2010

Porta-retrato

Tinha secado: esse era talvez o ponto. Não a palavra exata, que já não tinha essas pretensões, mas a mais próxima. Sabia pouco a respeito de árvores, ou sabia de um jeito não-científico, desses de tocar, cheirar e ver, mas imaginava que o processo interno de ressecamento começasse bem antes da morte aparecer no verde brilhante das folhas, na polpa dos frutos ou na casca do tronco. Não era evidente nem externo ou explícito o que padecia. E padecia? perguntava-se detalhando os traços com as pontas dos dedos, nada que revelasse na umidade da boca ou num contorno de nariz — uma dor? Não era assim. Gostaria de voltar atrás, com sentimentos curtos e claros feito frases sem orações intercaladas, iluminar aos poucos, um mineiro, uma lanterna, o poço fundo, uma linguagem? A unha batia contra o dente. Contatos assim: uma coisa definida chocando-se com outra definida também. E não só contatos, emoções, linguagens. Quase analfabeto de si mesmo, sem vocabulário suficiente para explicar-se sequer a um espelho. Não queria assim, esses turvos. Não queria assim, esses vagos. Sem nenhum humor. Sem nada que pulsasse mais forte que o frio cuidado com que desordenava-se, um gole disciplinado de vodca quando alguma corda do violino rebentava em plena sinfonia e, no meio do palco, impossível deter o acorde. Unicamente imagens assim lhe ocorriam, essa coisa das árvores, das gramáticas, das minas, dos concertos. Elegantemente, sempre. As luvas brancas, as longas pinças esterilizadas com que tocava sem tocar o todo, o tudo e o si. Um vício que lhe vinha quem sabe da mania de ouvir música erudita, mesmo enquanto apenas vivia, antes os fones nos ouvidos que os gritos na vizinhança. E por mais que afetasse um ar de quem lentamente cruza as pernas em público, puxando com cuidado as calças para que não amarrotassem, saberia sempre de sua própria farsa. Tão conscientemente falsa que sua inverdade era o que de mais real havia, e isso nem sequer era apenas um jogo de palavras. A grande mentira que ele era, era verdade. Ou: a mentira nele nunca fora fraude, mas essência. Seu segredo mais fundo e mais raso, daí quem sabe a surpresa branca de quando ouvira um quase-amigo dizer que não passava de uma personagem. Prometera-se sentimentos sem intercalados, mas sentia agora uma necessidade de explicar ao ninguém que superlotava sua constante platéia, com ele sempre fora assim: quase-amigos, nada de intimidades. Mas voltando atrás no ir adiante: uma surpresa quê. Não, não uma surpresa quê. Uma não-surpresa surpreendida, pois como e porque se fizera visível e dizível naquele momento o que nem sequer alguma vez escondera? Perdia-se, não eram teias. Nem labirintos. Fazia questão de esclarecer que sua maneira torcida não se tratava de estilo, mas uma profunda dificuldade de expressão. Por esse lado, quem sabe? As emoções e os pensamentos e as sensações e as memórias e tudo isso enfim que se contorce no mais de-dentro de uma pessoa — tinham ângulos? Havia lados mais como direi? Fragmentava-se: era os pedaços descosturados de uma colcha de retalhos. Pedia atenção aqui, por favor, mais por gestos, entonações ou simplesmente clima, e regirava: era os retalhos, um por um, não a colcha, ele. Desde o xadrez vermelho ao cetim roxo sem estampa, e assim por diante, todos. Quase parava de aborrecer-se então, como quem troca súbito uma peça para violino e cravo por um atabaque de candomblé. O leve tédio suspenso como poeira espanada logo voltava a desabar. O bocejo era a compreensão mais amarga que conseguia de si mesmo. E posto isso, cabia a seguir qualquer atitude desesperada como casar, tentar o suicídio, fazer psicoterapia ou um concurso para o Banco do Brasil. Localizava-se, mais fácil assim, dando nome às coisas. Um entusiasmo tênue como o gosto de uma alface. Isso, estar, ser. Uma vontade de interromper-se aqui, paladar estragado pelo excesso de cigarros tentando inutilmente dar um nome ao gosto que fugia entre os dentes. Em algum quarto, há muito não sabia de línguas no seu corpo, ou tão sabidas tinham se tornado que. Vacilava entre a certeza quase absoluta de estar alcançando qualquer coisa próxima de uma sabedoria inabalável, alta como um minarete, gelada como um iceberg — melhor assim: uma montanha de compreensão sem dor de todas as coisas. Ou, talvez o ponto, nem icebergs, nem minaretes — mas árvore. Inventava com os olhos no ar vazio à sua frente um verde copado de sumarentos frutos, como se diria num outro tempo, se é que alguma vez se disse, dizia sim, dizia agora, desavergonhado e frio. Verde copado de sumarentos frutos. Folhagem de seda lustrosa. Tronco pétreo ancestral. O seco invisível como verme instalado no de dentro. Impressentível, sob a casca, caminhando lento, questão de tempo, apenas, e semente contendo o galho crispado, mão de bruxa, roendo. Tinha dois olhos duros. Dois olhos grandes de quem vê muito, e não acha nada. Tinha secado, era certamente esse o ponto. Nunca a palavra exata, esclarecera de início. Já não tinha mais essas pretensões.

Caio/sp/78

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Quando frequentava a universidade, costumava parar – mais amiúde quando voltava para casa, e talvez o tivesse feito umas cem vezes – precisamente nesse lugar, e ficar perscrutando o panorama realmente magnífico e sempre chegando quase a surpreender-se com uma impressão vaga e sem solução. Um frio inexplicável sempre lhe vinha desse panorama magnífico; para ele esse quadro esplêndido era pleno de um espírito mudo e surdo... Sempre se admirava de sua expressão soturna e enigmática, e deixava para decifrá-la no futuro por não confiar em si mesmo. Agora se lembrava súbita e bruscamente dessas suas questões e perplexidades antigas, e lhe pareceu que não estava se lembrando delas por acaso. (...) Senti-a se mesmo quase ridículo, e ao mesmo tempo experimentava no peito uma pressão que chegava a provocar dor. Em algum ponto profundo, lá embaixo, que mal avistava sob os pés, apareciam-lhe agora todo aquele passado de antes, e os pensamentos de antes, e as tarefas de antes, e os temas de antes, e as impressões de antes, e todo esse panorama, e ele mesmo, e tudo, tudo... Parecia que ele havia voado para algum ponto no alto e que tudo desaparecera de sua vista... (...) depois, deu meia volta e foi pra casa. Teve a impressão de que naquele momento ele mesmo se havia amputado de tudo e de todos.

(Crime e Castigo - Fiódor Dostoiévski)

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Quando o coração ironiza, mulherzinha, tudo fica assim, sem sentido. Este mesmo coração que usava uma razão apoiada no sentimento e que depois de algumas histórias, hoje usa a emoção cravada na razão. É assim, depois de algumas noites não dormidas, coração aflito e uma pose de princesa que não combina com sua realidade, a boa mulher aprende, ninguém a faz chorar. Amar loucamente só se for ela mesma. Ninguém morrerá por amor, ninguém de verdade, óbvio! Mulher de verdade sangra, mulher de verdade não nasce pronta, se arruma com o dia a dia. Aliás, mulheres de verdade existem muitas mas boas mulheres são poucas, seja ela eu ou você.
E quando a razão passa a sonhar mais que o coração, é sinal que já foi ensinado a primeira lição da didática amorosa: o amor é eterno enquanto dura.



Ausente o encanto antes cultivado, percebo o mecanismo indiferente, que teima em resgatar sem confiança, a essência do delito então sagrado. Meu coração não quer deixar meu corpo descansar e teu desejo inverso é velho amigo, já que o tenho sempre a meu lado. Hoje então aceitas pelo nome, o que perfeito entregas, mas é tarde. Só daria certo aos dois que tentam se ainda embriagado pela fome. Exatos teu perdão e tua idade, o indulto a ti tomasse como benção, não esconda a tristeza de mim, todos se afastam quando o mundo está errado, quando o que temos é um catálogo de erros, quando precisamos de carinho, força e cuidado
Este é o livro das flores
Este é o livro do destino
Este é o livro de nossos dias
Este é o dia dos nossos amores.
(O Livro dos Dias - Legião Urbana)

terça-feira, 8 de junho de 2010

Já me decepcionei tanto que cada pessoa que passo a conhecer, não crio expectativas boas. É triste mas é a verdade. Uma atenção cordial, uma gentileza que me faz tão bem, fazia, aliás, é motivo para desconfiança: “Não, não existe gentileza que dure uma vida toda". Nada dura uma vida, visão pessimista que a idade traz. Visão real da vida que é tão minha. Decepção que traz mais decepção não só com as pessoas que não sou, mas com a pessoa que sou. Ora, como quero que o mundo seja gentil e confiável comigo se eu mesma não sou fiel á mim? Trago nas lembranças uma navalha que sempre que começo a recordar, me corta, me rasga. "Não deveria ter feito nada daquilo", a navalha que me corta é a culpa. Meu estado de espírito soa jazz mais blues, com gosto de vinho e na forma de cinzeiro para um cigarro que nunca acendi. Ora, como quero outro estado de espírito sendo que o hábito faz a natureza? Minha natureza tem como hábito o abandono e mesmo que um dia o hábito seja a adoção, o primeiro que adotarei será aquele que sempre deixei de lado, eu.