segunda-feira, 22 de outubro de 2012

O Direito ao Delírio (Eduardo Galeano)

Que tal se delirarmos um pouquinho? Que acham se fixarmos nossos olhos, mais além da infâmia para imaginar outro mundo possível?
O ar estará limpo de todo veneno que não venha dos medos humanos e das humanas paixões;
Nas ruas, os carros serão esmagados pelos cães, as pessoas não serão dirigidas pelos carros,
Nem serão programadas pelo computador, nem serão compradas pelos supermercados, nem serão também assistidas pela TV. A TV deixará de ser o membro mais importante da família
E será tratada como o ferro de passar ou a maquina de lavar roupa.
Será incorporado aos códigos penais, o crime de estupides para aqueles que o cometem por viver para ter ou para ganhar, ao invés de viver para viver simplesmente, assim como canta o pássaro sem saber que canta e como brinca a criança sem saber que brinca.
Em nenhum país irão prender os rapazes que se negam a cumprir o serviço militar, senão aqueles que queiram servi-lo.
Ninguém viverá para trabalhar, mas todos nós trabalharemos para viver,
Os economistas não chamarão mais o nível de vida o nível de consumo e nem chamarão de qualidade de vida as quantidades de coisas.
Os cozinheiros não acreditarão que as lagostas adoram serem fervidas vivas;
Os historiadores não acreditarão que os países adoram serem invadidos;
Os políticos não crerão que os pobres adoram comer promessas;
A solenidade deixará de acreditar que é uma virtude;
E ninguém, ninguém levará a sério alguém que não seja capaz de tirar sarro de si mesmo;
A morte e o dinheiro perderão seus mágicos poderes, e nem por falecimento, nem por fortuna se tornará o canalha em um virtuoso cavaleiro.
A comida não será uma mercadoria, nem a comunicação um negócio,
Porque a comida e a comunicação são direitos humanos;
Ninguém morrerá de fome, porque ninguém morrerá de indigestão;
As crianças de rua não serão tratadas como se fossem lixo, porque não existirá crianças de rua;
As crianças ricas não serão tratadas como se fossem dinheiro, porque não haverá crianças ricas;
A educação não será privilégio daqueles que possam pagá-la; e a polícia não será a maldição de quem não possa comprá-la.
A justiça e a liberdade, irmãs siamesas condenadas a viver separadas, novamente juntas, bem grudadinhas, costas com costas...
Na Argentina as loucas da ”Praça de Maio”, serão um exemplo de saúde mental, porque elas se negaram a esquecer nos tempos da amnésia obrigatória.
A santa mãe igreja corrigirá algumas erratas das escritas de Moisés, e o sexto mandamento mandará festejar o corpo. A igreja também realizará outro mandamento que Deus havia esquecido:
“Amarás a natureza, da qual fazes parte”.
Serão reflorestados os desertos do mundo e os desertos da alma;
Os desesperados serão esperados e os perdidos serão encontrados, porque eles são os que se desesperaram de muito, muito esperar e eles se perderam de muito, muito procurar.
Seremos compatriotas e contemporâneos de todos os que tenham vontade de beleza e vontade de justiça, tenham nascido; quando tenham nascido e tenham vivido; onde tenham vivido, sem que importem nenhum pouquinho as fronteiras do mapa e nem do tempo;
Seremos imperfeitos, porque a perfeição continuará sendo o chato privilégio dos deuses.
Mas neste mundo trapalhão e fodido seremos capazes de viver cada dia como se fosse o primeiro e cada noite como se fosse a última.

Nenhum comentário:

Postar um comentário